Revolta

Para ir sendo construído, disse eu no início. A obra acabou.









Partiste subitamente. Era eu uma criança, ainda. Precisava tanto de ti. Amava-te tanto. E nunca percebi, até hoje, a razão da tua partida. A única certeza que tenho é que continuas a acompanhar os meus dias, as tristezas e alegrias, a ser o meu confidente, a luzinha que me protege. O rosto que tão ternamente me observava, a paciência com que me satisfazias os caprichos, o riso aberto quando me ensinaste a andar de bicicleta, o orgulho com que me ofereceste o piano, o gosto pela dança que me transmitiste, a doçura com que me tratavas por Carocha. Sabes que raramente choro; penso que muitas das lágrimas que me estariam destinadas pela vida fora chorei-as quando tu partiste. Mas hoje choro, Pai, ao escrever estas palavras. Choro de mágoa e de muita saudade. E choro ainda de revolta porque nunca hei-de perceber por que tiveste de partir tão cedo. Sim, sei que não gostas de me ver chorar e, por isso, com um sorriso, ofereço-te um dos tangos que tantas vezes te vi dançar. 
Eram sempre grupos animados. Vinham do norte, do sul e das ilhas (poucos, estes). Os guias eram escolhidos a dedo para darem conta do recado com passageiros tão exigentes. Lá nos encontrávamos todos no aeroporto. Risos, abraços, reencontros com amigos de outras aventuras. Olhares curiosos dos novatos nessas andanças. Os destinos eram mais ou menos cobiçados. Apenas alguns exemplos: Egipto em Abril (um calor de 36 graus às oito da manhã; não há quem aguente uma aula de História no Vale dos Reis à torreira de um sol impiedoso; os camelos a derraparem no asfalto em corrida desenfreada sob o olhar da Esfinge; uma quebra de tensão no Museu do Cairo por falta da bica da manhã; a risota dos que se baldaram ao Jardim Botânico para irem beber uma cola no fresco de uma sombra e o raspanete que ouviram do guia que, apopléctico e transpirado, os veio resgatar para não ficarem em terra; e tantas outras peripécias.) Viena em Março (neve com fartura e cinco dias de encantamento pela beleza da cidade, a magia da música, a imponência da arquitectura, a simpatia das pessoas e, por que não?, os vapores do vinho novo numa taberna do Grinzing). Brasil em Maio (a mais divertida de todas, 15 dias a rir, rouquidão geral à chegada a Lisboa; Recife com os escaldões dos incautos; a jóia que é Olinda; Salvador, ah, a Baía, suas gentes e cultura, a tempestade enfrentada numa escuna sem bóias para todos os passageiros, o maior susto da minha vida; o Rio, o espanto dos até então cépticos face à Cidade Maravilhosa; os espectáculos, as jantaradas, os afoitos que, para pasmo do porteiro, voltaram a pé para o hotel às 3 da manhã, depois de um evento que exigia traje a preceito e jóias verdadeiras). Mas havia trabalho, também. Visitar 3 ou 4 hotéis por dia, bisbilhotando tudo, quartos, suites, salões. Porque eram study trips, ou educacionais, oferecidas pelas companhias aéreas, em parceria com os operadores turísticos, aos agentes de viagens. Que, como referi logo de início, são os passageiros mais exigentes que há. E também os mais divertidos! 

(foto:www.thousandimages.com)
«Talvez por estar habituado a ser medido de longe é que o Português parece assim, vergado à História. Lá anda, como se diz. Labuta à margem da Europa, muito com ele. Umas vezes descobrem-no, feito pastor, encabritado num penhasco; outras como andarilho sem norte, de feira em feira. Há quem o veja João Soldado em África com o diabo no bornal, ou como rapa-tacho de quartéis em horas de cornetim. Sim, também isso; isso e mil coisas mais. Mas focado com rigor e em ampliação condigna, é possível descobrir-lhe os segredos da coragem e da beleza no seu risco de resistir, sobrevivendo no hora a hora.»
O "tijolo" entrou na recta final, por isso não há folgas. Mas para todos vós...